CRISE HÍDRICA

Tentativa para explicar questão complexa

15/06/2015

por Julio Cerqueira Cesar Neto*

Em setembro do ano passado, lancei meu livro “Um Estadista Urgente - São Paulo está precisando” e, na semana seguinte, ocorreu a eleição para Governador do Estado. Logo após a apuração dos votos, me surgiu a “questão complexa” do título deste ensaio:

Como foi possível o governador Geraldo Alckmin ser reeleito no primeiro turno, após 20 anos de permanência no Palácio dos Bandeirantes sem apresentar nenhuma realização de algum significado em benefício do eleitorado e, em conseqüência, ter propiciado nesse período a deterioração de todos os setores de responsabilidade do governo do estado? Teria ainda contra a sua gestão, no próprio ano da reeleição, a sua clara responsabilidade pela gravíssima crise hídrica e a forma irresponsável como vinha gerenciando a sua evolução.

Em abril deste ano, assisti excelente palestra do Professor Marcos Telles “Entendendo a política: como pensa o político e como pensa você” e, em seguida, pude manter 2 ou 3 contatos pessoais rápidos, porem muito ricos, que me encorajaram a escrever este ensaio embora reconheça as minhas limitações para enfrentar questão dessa complexidade. Entretanto, a responsabilidade por todo esse texto é única e exclusivamente minha.

Premissa 1

No curso do processo de desenvolvimento do nosso estado e, especialmente da sua região metropolitana, se distinguem ações de responsabilidade do estado, são as políticas públicas, e as demais ficam por conta da iniciativa privada.

Constatação 1

Conforme descrito no livro “Um Estadista Urgente”, nos últimos 25 anos o nosso estado apresentou um extraordinário contraste entre a pujança do que foi conseguido pela iniciativa privada e a lamentável degradação atingida e ainda em curso de todos os setores de responsabilidade do estado. Isso nem sempre foi assim.

Constatação 2

Também do mesmo livro: população do estado 40 milhões; população da região metropolitana 22 milhões sendo 19 milhões (85%) das classes média e alta e 3 milhões (15%) da classe pobre, que habitam em favelas, cortiços, loteamentos clandestinos e áreas de risco de inundações e deslizamentos de encostas.

Políticas públicas de responsabilidade do estado:

 Gestão metropolitana, gestão de recursos hídricos, abastecimento de água (quantidade e qualidade), coleta de esgotos, poluição das águas, do ar e do solo, transporte publico, habitação/saúde/educação para as populações de baixa renda, enchentes e segurança publica.

Constatação 3

A intensa e contínua degradação ou completa inexistência de todas essas políticas públicas afetam, direta e cruelmente, podendo ser caracterizadas inclusive como desatendimento dos seus direitos humanos, toda a população pobre da região metropolitana, os 3 milhões de habitantes (15%).

Porém, os restantes 19 milhões (85%) da mesma região são afetados diretamente apenas por poucas dessas políticas, como é o caso da má qualidade da água distribuída, a poluição do ar e a segurança publica; a menos da segurança publica, é provável que a maioria deles nem saibam disso. São afetados de forma indireta por outras poucas dessas políticas como as enchentes (algum desconforto apenas em cerca de 60 dias por ano), aspectos estéticos da poluição das águas e congestionamentos como consequência da deficiência dos transportes públicos.

Constatação 4

De outra parte, as ações da iniciativa privada cresceram mais que a população e se sofisticaram em todo o estado, mas especialmente na região metropolitana, propiciando o seu contínuo poder de atratividade, embora o triste quadro das políticas públicas. O PIB per capita da macrometrópole chegou aos US$ 17.000 e o da capital foi além dos US 20.000.

Entre esses atrativos estão:

Oportunidades de negócios e empregos bem remunerados, alto índice de turismo de negócios, sistemas avançados de comunicação, tecnologia de ponta em vários setores, produção cultural inesgotável: cinemas, teatros, congressos, shows e eventos de toda natureza, centros médicos avançadíssimos, mercado imobiliário de excelência, capacidade e qualidade hoteleira, gastronomia sofisticada e de alta qualidade, amplo comércio de luxo e de massas, universidades e escolas de primeira linha, dentre outras.

Tentativas de explicação para o sucesso eleitoral do governador

Tendo em vista que a ação do estado é bem mais sensível na região metropolitana do que no resto do estado, onde predomina a ação das prefeituras, para os objetivos desse ensaio o uso dos elementos da região são os mais indicados.

Nos sistemas complexos, os efeitos tendem a ser provocados por causas múltiplas. A seguir apresento as que consegui identificar. Certamente existirão outras.

Explicação 1

A parte do eleitorado da região que sofre diretamente as consequências da ausência das políticas publicas e que poderia votar contra o governador é desprezível em termos eleitorais (15%), não preocupa o governador.

 O relativo desconforto do resto do eleitorado (85%) com a ausência do governo é amplamente superado com os benefícios que a região oferece através das ações da iniciativa privada e, nessas condições, não distinguindo com clareza as ações do governo das da iniciativa privada, pode até achar que o governo é bom. Além disso - nos ensina o psicólogo Daniel Kahneman, que em seu livro Rápido e Devagar - Duas formas de pensar discute o fato de que o nosso cérebro tem mais medo de perder do que ânsia de ganhar - talvez esses 85%, tendo em vista a ausência de escândalos nos níveis dos que tem sido apresentados pelo governo federal, preferiram “deixar como está” a arriscar uma mudança que poderia levar a uma situação pior: seria o inverso do “rouba mas faz” - “não faz mas não rouba ou rouba pouco”.

Explicação 2

A crise hídrica iniciada oficialmente em Janeiro de 2014, mesmo ano da eleição, poderia ter afetado os 85% do eleitorado ante a perspectiva de virem a sofrer diretamente com a falta de água e pela identificação da sua causa principal: a falta de investimentos que deveriam ter sido feitos pelo mesmo governador quase 15 anos atrás.

Entretanto, o governador assumiu pessoalmente o seu gerenciamento, com o objetivo político de minimizar essa provável influência negativa. Montou um milionário esquema publicitário, que acabou se confundindo com sua campanha eleitoral, baseado numa prática antiga, mas que se ampliou muito nos últimos 25 anos: a demagogia. O sucesso dessa prática depende de um comportamento anti-ético e imoral do governo: a chamada propaganda enganosa, ou seja, a mentira. A mídia em geral e os jornalistas em particular vêm contribuindo muito para o sucesso dessa prática, exercendo o que o experiente jornalista Carlos Alberto Di Franco chama de jornalismo declaratório (artigo Serviços públicos à deriva - O Estado de São Paulo 11/05/2015). Diz ainda o articulista, “nossa missão é confrontar a declaração do governante com a realidade dos fatos”, e mais adiante afirma, “nós jornalistas somos (ou deveríamos ser) o contraponto dessa tendência”.

Nessa linha, o governador repetiu, com incrívelfreqüência, que“a causa da crise era a maior estiagem dos últimos 84 anos, que não faltaria água, que não faria racionamento e que as chuvas viriam a partir de outubro acabando com a crise”. Nenhuma dessas repetições tem relação com a realidade. Para lembrar apenas o problema do racionamento, sempre negado com veemência: em maio, o Cantareira secou e o governador, para diminuir o consumo, tomou duas providências, uma explícita, a redução da pressão na rede de distribuição nos setores que dispunham de válvulas redutoras de pressão (recentemente reconhecida como racionamento pelo atual presidente da Sabesp), e outra escondida da população, só descoberta alguns meses depois, fechando os registros dos setores que não dispunham dessas válvulas. Essas intervenções vem sendo feitas nas áreas de periferia, atingindo populações de baixa renda, além daqueles 3 milhões (15%) que já não tinham água antes da crise; a própria Sabesp confirmou isso, informando que os bairros nobres da cidade estão consumindo 45% mais água que os demais (o que é lógico, pois não sofrem racionamento). Mesmo assim, o governador não parou de afirmar que não existe racionamento e que não vai faltar água em São Paulo!

Em outubro de 2014, o governador foi reeleito em primeiro turno, sem aparente perda de eleitores, ou seja, o eleitorado acreditou nele.

Explicação 3

A indigência do nosso sistema político partidário, expressa pela pobreza do quadro de candidatos que colocou à disposição do eleitorado para eleger o governador do maior estado da federação.


*Júlio Cerqueira Cesar Neto é engenheiro, durante 30 anos foi professor de Hidráulica e Saneamento da Escola Politécnica/USP.